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Das coisas que não lembro

Das coisas que eu não lembro: a emoção de ter meus filhos nos braços logo após o parto. Só flashes tênues, o corredor até a sala do parto de João, Ana com um pequeno machucado no nariz quando a segurei pela primeira vez, a dor antes da anestesia, a cortina verde do quarto e um e a amarela do quarto do outro, o mesmo armário, as noites em claro, o choro da Ana, o bom de amamentar, o ir e vir da cadeira de balanço. Não sei porque não lembro, mas gostaria dessa memória de elefante infalível. Queria recordar, sem castigo ou punição, dos momentos em que deixei passar oportunidades de amá-los. Não o amor latente que, tanto na emoção como na razão, sempre quis, com erros e acertos, o bem para eles. Mas o amor daquele instante, aquele que detecta, como um radar do Pentágono, os sinais onde é importante interferir, talvez só escutar, quem sabe o afago, ou respeitar o silêncio, ou invadir o quarto, romper a porta e ouvir o grito de socorro. Acho que deixei passar. Há por aqui um desej

Porque a gente quase nunca é incrível

Segundo Lacan, em cada um de nós há sempre um ser único, indivisível e incomparável, porque desenhado à luz de duas referências essenciais: o real e o dizer. O real, nesse caso, é o concreto, o diagnóstico clínico, a hipertensão, o diabetes, a dor física ou de alma, o sentimento vivo transformado em tristeza, alegria, esperança, enfado. Mas está no dizer, no falar, no expressar. seja do jeito que for, aquilo que nos diferencia um do outro.  Não somos um só diagnóstico para um problema concreto, somos diagnósticos e soluções múltiplas para aquilo que somos quando somos por completo: o que é real e a maneira pela qual o real se expressa em nós. Não somos incríveis quase nunca. Somos tão somente um emaranhado de células, indivisíveis e incomparáveis, que se expressam e interagem, interpretam e tiram conclusões, amam e desamam, eventualmente com os demais. Muito eventualmente. Verônica Cobas