Das coisas que não lembro



Das coisas que eu não lembro: a emoção de ter meus filhos nos braços logo após o parto. Só flashes tênues, o corredor até a sala do parto de João, Ana com um pequeno machucado no nariz quando a segurei pela primeira vez, a dor antes da anestesia, a cortina verde do quarto e um e a amarela do quarto do outro, o mesmo armário, as noites em claro, o choro da Ana, o bom de amamentar, o ir e vir da cadeira de balanço.

Não sei porque não lembro, mas gostaria dessa memória de elefante infalível. Queria recordar, sem castigo ou punição, dos momentos em que deixei passar oportunidades de amá-los. Não o amor latente que, tanto na emoção como na razão, sempre quis, com erros e acertos, o bem para eles. Mas o amor daquele instante, aquele que detecta, como um radar do Pentágono, os sinais onde é importante interferir, talvez só escutar, quem sabe o afago, ou respeitar o silêncio, ou invadir o quarto, romper a porta e ouvir o grito de socorro. Acho que deixei passar.

Há por aqui um desejo vaidoso do poder. Mas existe amor nas relações de poder. Algo como o desejo insano de parecer forte quando se é frágil como a pele que nas minhas mãos parece envelhecer tão rapidamente. Um espaço no tempo em que o delírio faz interromper a roda da história e no qual podemos tudo, principalmente não ouvir nada que não seja o som do avião em ritmo de cruzeiro. Que turbulência que nada! Aqui sou soberana. Quase tirana. Mas é preciso talento para sê-lo assim. Definitivamente, não tenho.

Verdade que sinto essa fresta. Às vezes, pequenina. Por onde só passa um ventinho suave. Por vezes, é que nem Moisés abrindo o mar em duas frentes. Sou tomada pelo gap tsunâmico. Como aquele caroço de fruta que a gente engole sem querer. Arranha, marca, dói....mas passa.   
Hoje falo disso além de escrever. Preciso falar mais. E dizer escrevendo enquanto falo pensando.  Minha memória é pequenina. Há um certo perdão nisso tudo.

Verônica Cobas

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Porque a gente quase nunca é incrível